Na série teen Stranger Things, há um mundo de cabeça para baixo que existe sobre o nosso, onde as coisas acontecem de forma invertida e assustadora, com monstros de verdade. Mas há quem se integre e associe a eles.
A pandemia da covid-19 parece ter trazido à tona de fato um mundo de cabeça para baixo. Que, ao negar a existência da pandemia, faz aflorar uma realidade invertida e assustadora que, somente no Brasil, já matou mais de 450 mil pessoas.
A declaração ontem do presidente Jair Bolsonaro de que a sua oposição – com a ajuda da imprensa, “de esquerda” – tem agido para provocar o caos parece uma clara demonstração de um mundo invertido que veio à tona. “Estranhas coisas”, traduzindo o título da série.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro tem insistido em agir o tempo todo de forma oposta ao consenso mundial sobre a covid-19. Exemplos dessa inversão de lógica não faltam.
O mundo, como aliás sabe desde o século 18 sobre como vencer doenças virais, trabalha para acelerar ao máximo a produção de vacinas. Por aqui, Bolsonaro politizou a questão e atrasou como pode a aquisição de vacinas. Insiste em dizer que o Brasil, mesmo com todo o seu trabalho contrário, é o quarto país do mundo que mais vacina. Esquece-se de dizer que isso é em números absolutos – afinal, o Brasil, com seus mais de 200 milhões de habitantes, é o sexto país mais populoso do mundo. Em termos proporcionais, nós somos somente o 77º país que mais vacina.
O uso de medidas sanitárias como o uso de máscaras é recomendado por todas as autoridades sanitárias do planeta. Inclusive pelo Ministério da Saúde do governo Jair Bolsonaro. Mas o presidente declara que está “de saco cheio de usar máscara”. E só a usa quando não há alternativa, como quando está em países estrangeiros. Todas as autoridades sanitárias, inclusive o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, prega a necessidade de distanciamento social. Bolsonaro faz reuniões de motociclistas e provoca aglomerações.
O presidente Bolsonaro quebra mesmo as lógicas de disciplina e hierarquia que ele declara exaltar e respeitar. Especialmente a disciplina militar. A ida do general Eduardo Pazuello a um ato político no último fim de semana afronta fortemente as normas das Forças Armadas. Um militar da ativa é proibido de participar de atos políticos. Fosse um general de esquerda em um evento do PT, Pazuello a essa altura já estaria preso.
Diante da tremenda saia justa, o Alto Comando tentou convencer Pazuello a ir para a reserva. Aliás, já queria que ele assim fizesse desde que assumiu o Ministério da Saúde. Pazuello recusa-se. E, ao se recusar, já desafia a hierarquia militar. Hoje, o Exército está diante de uma encruzilhada. Por coerência, precisa punir Pazuello. Mas, se punir, Bolsonaro ameaça desfazer a punição, como comandante das Forças Armadas. Ou seja: o capitão reformado afrontará assim toda a cadeia hierárquica que, dentro do Exército, estaria acima dele.
É um presidente que se elegeu prometendo uma revolução nos tratos e costumes políticos. Mas governa amparado no Centrão. Dizendo que era a solução contra a corrupção que apontava no PT desde o Mensalão. Mas mantém a sua base de apoio, se a denúncia for comprovada, com um milionário esquema de distribuição de recursos orçamentários, batizado de “tratoraço”. Que discursa contra a corrupção, mas tem um ministro do Meio Ambiente investigado em operação da Polícia Federal. Um ministro do Meio Ambiente investigado por agir contra o meio ambiente.
Um político que, longe de comprovar a novidade, talvez volte para o PP, onde foi deputado por muitos anos, para disputar a reeleição. O PP é o partido com maior número de políticos condenados pelo Mensalão e pela Lava Jato.
Ou seja, tudo parece um mundo invertido. No qual, talvez, o agente do caos aponte nos outros a confusão que propaga. Estranhas coisas…