Publicado por: Rudolfo Lago | 1 dez 2023
Vem de longe o rolo que foi parar agora na ruidosa discussão no Congresso sobre se o Supremo Tribunal Federal (STF) extrapola ou não de seus poderes. Nós mesmos já costeamos essa discussão, quando dissemos por aqui que, hoje, o Executivo de Lula tinha se tornado o menor dos três poderes. Independentemente do importante papel que o Supremo exerceu de fato na contenção dos arroubos autoritários do governo anterior, há hoje, sim, um desequilíbrio entre os poderes, a partir da evolução de situações que se iniciaram já há quase 30 anos, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso.
Foi em 1997, dois anos, portanto, depois do início do primeiro governo FHC, que o saudoso Ariosto Teixeira apresentou no país o termo “judicialização da política” quando fazia sua transição do jornalismo para a ciência política. Sua tese de pós-graduação foi batizada de “Decisão Liminar: a Judicialização da Política”.
Ariosto não inventou o termo. Ele surgiu primeiro nos Estados Unidos mais ou menos na mesma época. Por aqui, porém, ficava claro a partir de um maior ativismo político da Suprema Corte. Um ativismo que, até, muitas vezes, nem partiu da iniciativa do próprio STF, mas da provocação a ele.
Foi se tornando comum o processo pelo qual políticos e seus partidos passaram a recorrer à Suprema Corte para resolver as suas pendengas. As famosas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adis) a Ações de Descumprimento de Preceito Constitucional (APCDF) às quais se foram recorrendo com maior frequência para resolver questões políticas. Muitas vezes, gerando liminares concedidas nas tais decisões monocráticas que agora o Senado tenta derrubar com a sua Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que está na Câmara.
A verdade é que, na evolução desse processo, foram os próprios políticos e seus partidos que foram dando mais e mais ao Supremo a palavra final. E o poder parece prato mais saboroso que Filé Wellington, que Creme Brulée, que Éclair de pistache. Quem prova, quer dele sempre mais e mais.
Um Legislativo em alguns momentos fraco e um Executivo em crise permanente deram ainda mais espaço para que o Judiciário, pela anomia e fraqueza dos dois outros poderes, começasse a legislar e a resolver diversas das questões políticas.
Foi assim que o Supremo Tribunal Federal permitiu, entre outras questões, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto de bebês anencéfalos. O Congresso não tinha condições ou força para se organizar, a Justiça resolvia em seu lugar.
De Corte discreta e sóbria, o STF foi ganhando destaque, seus ministros foram se tornando figuras conhecidas. Brinca-se que hoje em dia o brasileiro sabe escalar os onze ministros da Suprema Corte e não consegue escalar os onze titulares da combalida seleção brasileira de futebol.
Curioso é que os primeiros pontos de inflexão a respeito dos eventuais abusos cometidos pelo Supremo surgiram pela via da esquerda, no julgamento da Ação Penal 470, o famoso Mensalão. Quando ali se percebeu que claramente os ministros calibravam suas decisões para que as condenações terminassem em cadeia (e o ministro Ricardo Lewandowski, agora um dos cotados para o Ministério da Justiça, tentava calibrar no sentido contrário), cresceu a discussão sobre se havia ou não abusos da Corte. Ficou famosa há algum tempo a história da Primeira Turma de ministros que prendia, e da Segunda Turma de ministros que soltava. Insegurança jurídica? O termo não parecia preocupar a Corte.
Já um pouco mais adiante, nas decisões tomadas a partir da Operação Lava Jato, foi na mesma linha de se proteger de eventuais extrapolações que surgiu o grupo Prerrogativas. Até surgirem as conversas da Vaza Jato, que mostraram as combinações feitas pelos procuradores de Deltan Dallagnol com o juiz Sergio Moro para produzir condenações, o STF corroborou o trabalho da Lava Jato.
O mesmo STF que depois anulou provas e reviu condenações negou em 2018 habeas corpus de Lula e permitiu que ele passasse um ano, sete meses e um dia na prisão. O mesmo Dias Toffoli que recentemente anulou todas as provas obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht, em 2019 negou a Lula o direito de deixar a cadeia em Curitiba para ir ao velório de seu irmão Genival, o Vavá.
É claro que a Justiça e o Supremo sempre foram políticos. O próprio modelo de escolha dos ministros do STF por nós escolhido reforça esse aspecto. Os ministros são nomeados pelo presidente da República e sabatinados e aprovados pelo Senado Federal. Em tese, parece ser uma boa trama de diálogo entre os Poderes, envolver Executivo e Legislativo no processo de escolha dos juízes da Suprema Corte. Ocorre, porém que, nesse processo, os ministros entram devedores da escolha primeiro do presidente e da aprovação depois do Senado. Quando estão sendo escolhidos, fazem uma peregrinação pelos gabinetes dos senadores. O que acertam, o que prometem, fica eternamente entre eles. Estamos assistindo novamente a isso no beija-mão do ministro da Justiça, Flávio Dino.
Enquanto isso, os ministros do Supremo exibem-se com suas vistosas togas pretas como capas de justiceiros na TV Justiça.
Se a partir da ascensão da direita no governo Jair Bolsonaro as reclamações relacionadas ao ativismo do Supremo ganharam propósitos menos nobres e antidemocráticos, a verdade é que tais questionamentos não surgiram agora.
O surgimento agora do projeto de lei na Câmara que também visa limitar poderes do STF mas em uma versão mais light que a PEC do Senado mostra que talvez a discussão a respeito da necessidade de recalibrar os três poderes da República de alguma forma acabe por avançar. Talvez seja melhor seguir com o “encurta toga” mais soft proposto pelo presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), que enveredar pela PEC do Senado ou pela instalação da CPI proposta pelo deputado Marcel Van Hatten (Novo-RS).
Como dizia aquele desenho animado: “Enquanto isso, na Sala de Justiça”…