Entre as várias tiradas do impagável humorista do século passado Aparício Torelly, o Barão de Itararé, uma dizia o seguinte: “De onde menos se espera, é que não vem nada mesmo”. O próprio epíteto que escolheu para ele, Barão de Itararé, tinha relação direta com essa das suas frases. Torelly não tinha título de nobreza, não era barão de nada. Ele se autoconcedeu o título como “condecoração” aos “relevantes serviços à Pátria” prestados na Batalha de Itararé, conhecida como “a batalha que não houve”. Quando as tropas movidas por Getúlio Vargas moveram-se em 1930 para derrubar a República Velha, havia uma expectativa de que o Exército do então presidente Washington Luiz se posicionasse na cidade paulista de Itararé e que acontecesse ali uma sangrenta batalha. Não aconteceu nada. Getúlio chegou ao Rio, ele e sua turma amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco e iniciaram uma ditadura que durou 15 anos.
Não houve batalha. Não houve heróis da batalha. Não houve condecoração. Não houve barão. Só houve a piada. Embora as frases do Barão de Itararé ainda sejam engraçadíssimas e dignas de serem repetidas, talvez Torelly tenha se tornado um produto do seu tempo. Porque, agora, nesses estranhos tempos em que estamos vivendo, foi de onde menos se esperava que veio toda essa atual confusão entre os poderes da República que culminou com a aprovação, na noite de quarta-feira (22), da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limite os poderes do Supremo Tribunal Federal (STF).
Poucos ministros na história brasileira talvez tenham sido mais discretos que Rosa Weber. Em um tempo em que aos ministros só falta virarem comentaristas de futebol, Rosa Weber fazia questão de manter a máxima de que “juiz só fala nos autos”. Rosa não costumava dar entrevistas. Rosa não costumava fazer discursos fora dos momentos de julgamento. Mesmo no momento de proferir seus votos, eles não costumavam durar horas na frente dos holofotes da TV Justiça como acontece com vários dos seus colegas.
Mas foram as últimas semanas da passagem de Rosa Weber pela presidência do Supremo que acabaram precipitando as ações do Senado. É claro, as insatisfações já vinham de mais tempo. Eram fortemente estimuladas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que chegou a ameaçar não cumprir decisões vindas do ministro Alexandre de Moraes em um discurso no 7 de setembro de 2021 (isolado, viu-se obrigado a recuar depois). Mesmo antes disso, eram estimuladas por frases como a do filho do ex-presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que dizia que poderia fechar o Supremo, com “um soldado e um cabo”.
Toda essa insatisfação estava diretamente relacionada ao fato de o STF ter assumido sua posição no velho sistema de freios e contrapesos no sentido de impedir os arroubos autoritários de Bolsonaro. Por outro lado, mesmo fora do campo conservador há quem aponte para um excesso de poder do Supremo, para a possibilidade de ações que eventualmente ultrapassaram limites.
Então, Rosa Weber chega às suas últimas semanas como presidente do Supremo e resolve deixar como legado importantes decisões da Corte a respeito de temas há muito sem decisão. Registre-se que temas para os quais a Corte foi instada por alguém a julgar. Mas cujos julgamentos talvez pudessem ser adiados, colocados em banho-maria. Então, sob o comando de Rosa, o STF tornou inconstitucional o Marco Temporal das terras indígenas, descriminalizou o porte de maconha, flexibilizou as possibilidades de aborto.
Rosa não estava errada nas decisões que tomou. E ela não tomou as decisões sozinha. Essas não foram monocráticas, mas fruto do posicionamento coletivo dos ministros da Corte. Mas uniram conservadores no Senado para, então, dar o troco que já ensaiavam no Supremo.
Assim, de onde menos se esperava é que acabou acontecendo tudo. Pacheco foi pressionado pelos senadores a fazer o que prometera na sua campanha para presidente do Senado, quando discursou que a Câmara Alta não “abaixaria sua cabeça” na relação com os demais poderes. Soma-se a isso o fato de que Pacheco começava a vir rarearem suas chances de se reeleger senador: sua base em Minas é conservadora. E soma-se ainda a pressão do presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre (União-AP), para sucedê-lo em 2025.
Depois que o senador Renan Calheiros (MDB-AL) procurou o presidente do PSD, Gilberto Kassab, propondo uma aliança, Alcolumbre movimentou-se para buscar apoio na oposição. Foi procurar o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, e o ex-presidente Jair Bolsonaro. Pacheco é do mesmo partido de Kassab, e não gostou da ideia de vir a ser atropelado na sua própria legenda com relação à sua aliança com Alcolumbre. Resultado: 52 votos favoráveis à PEC que encurta a toga dos ministros do Supremo.
Agora, será preciso ver se mais uma vez poderá se inverter a frase do Barão de Itararé nos próximos dias. Talvez de onde tudo agora se espera é que no futuro possa não vir nada. Talvez o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), engavete eternamente a proposta. Talvez o tema vá parar no próprio Supremo que considere a PEC inconstitucional. Talvez tudo não tenha passado de uma marcação de posição política que, já feita, termine por aqui.
Mas é difícil imaginar que a discreta Rosa Weber imaginasse que seria pivô de uma confusão desse tamanho…