“O Médico e o Monstro”, ou “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, é um exemplo clássico da exploração do transtorno de bipolaridade e da própria dualidade humana no desenvolvimento de uma história. Para além dos transtornos mais graves de personalidades múltiplas, todo pacato cidadão, gentil e cordato como o Dr. Jekyll esconde dentro de si um tipo selvagem, violento, mau caráter e sem limites como o Mr. Hyde, que tenta aflorar. Bem recentemente, nós vimos surgir uma horda de “cidadãos de bem” brandindo suas armas e seus preconceitos. Ainda estão por aí. Ainda não nos livramos deles.
Governos também têm seus transtornos de bipolaridade e suas dualidades. Ainda mais neste complexo Brasil onde os governos são sempre obrigados a fazer coalizões amplíssimas. Que unem gregos e troianos, paulistas e baianos (aqui contém ironia forte. Entendedores entenderão).
Uma dessas dualidades parece ter se instalado no Palácio do Planalto antes mesmo do comando do ar-condicionado central do prédio. Ainda na época da ditadura, a salinha com o comando do ar-condicionado ficava ao lado do Comitê de Imprensa, identificado com uma plaquinha onde se lia “Fancoil”. Um trote comum com os repórteres novos que ali chegavam era sugerir a eles que procurassem para informações o “Coronel Fancoil”. Na verdade, Fancoil é o nome desses aparelhos de ar-condicionado usados em grandes prédios.
Pois bem. Parece estar instalada há tanto tempo quanto o Coronel Fancoil a dualidade entre ortodoxos e heterodoxos na economia. Entre os conservadores e os desenvolvimentistas. Entre aqueles que pregam que o país não pode se endividar, gastar mais do que arrecada para não gerar inflação e perder o controle da economia, e os que entendem que não há problema em se endividar um pouco, gastar além da arrecadação, desde que isso sirva para gerar mais desenvolvimento, fazer o país crescer e eliminar as desigualdades.
Se nenhum jornalista no Planalto conseguiu até hoje falar com o Coronel Fancoil, um sem-número já relatou esse debate entre ortodoxos e heterodoxos em variados governos. Trata-se de uma dualidade muitas vezes pesada, até violenta. Não foram poucas as vezes em que essa briga produziu rasteiras e derrubou ministros.
A novidade é essa dualidade agora ter aflorado por iniciativa do próprio presidente da República. Que tenha sido o próprio Lula a provocar o Dr. Jekyll e invocar a presença do Mr. Hyde (e aqui não importa quem seja o médico ou o monstro, porque isso irá depender das torcidas pelos times econômicos de quem estiver lendo).
Ainda que seja verdade que todo mundo em Brasília já duvidava da possibilidade de cumprimento da meta fiscal de déficit zero no ano que vem, é verdade que ela era também a meta fiscal oficialmente posta, tanto na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) quando no orçamento do ano que vem. Não era apenas um desejo expresso do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e da ministra do Planejamento, Simone Tebet. A meta estava ali posta como um esforço ao qual o governo oficialmente se comprometeria.
Por isso, na semana passada, o relator da LDO, deputado Danilo Forte (União-CE), dizia que o caminho ideal teria sido o abandono do déficit zero de uma forma paulatina, dentro do diálogo e da negociação do orçamento do ano que vem. Surgindo do consenso entre governo e Congresso. De modo que, diante das conversas, o mundo econômico constatasse naturalmente que a meta era inexequível e aceitasse uma flexibilização de forma natural.
De supetão no meio de uma conversa com jornalistas na sexta-feira (27), não foi assim que a coisa foi colocada à mesa. E acabou gerando reações desnecessárias. Não se sabe se Lula combinou antes com Haddad que expressaria dessa forma sua posição sobre o déficit zero. Pela irritação posterior de Haddad, aparentemente não.
Haddad vê-se agora obrigado a aparar arestas. Se por um lado Lula decretou o fim da meta, o problema agora será controlar o Mr. Hyde que foi invocado. Após a fala de Lula, Danilo Forte já declarou que ele também passa a não ter o compromisso com o déficit zero na proposta de LDO. Autorização para gastar mais não é somente um desejo do Executivo. O Legislativo, com suas emendas orçamentárias, também sonha imensamente com isso.
Invocado, o selvagem Mr. Hyde aceitará ficar somente em um déficit de 0,25%? Ou de 0,5%? Fernando Haddad segura o monstro? As próximas semanas dirão…