Publicado por: Rudolfo Lago | 13 jan 2024
Era o final da década de 1980 quando pela primeira vez o Congresso se reuniria para elaborar o orçamento do país dentro das novas regras da Constituição promulgada em 1987. Até então, a elaboração do orçamento era uma pauta coberta por repórteres de economia. Importava ali saber coisas como a previsão de inflação para o ano que vem, qual seria o valor do salário-mínimo, etc. Ainda com essa expectativa, acabou caindo para mim a cobertura da primeira reunião da Comissão de Orçamento. Não havia repórter de economia disponível no momento na redação de O Globo, e meu chefe na época, o saudoso Rodolfo Fernandes, pediu que eu fosse cobrir.
A coisa impressionou desde o primeiro momento. Diante da enorme disposição de deputados e senadores de participar da sessão, a comissão teve de se reunir no antigo Auditório Nereu Ramos, no início do corredor das comissões. Não havia nenhuma outra sala disponível para abrigar a quantidade de pessoas que queria participar. Depois disso, a sala foi reformada, virou o atual espaço mesmo da Comissão de Orçamento, e o Auditório Nereu Ramos foi transferido para outro lugar.
A disposição dos parlamentares era tamanha que lembrava os versos daquela canção de Dominguinhos, como coloquei na matéria que escrevi na ocasião: “Quem está fora quer entrar, mas quem está dentro não sai”.
“Rodolfo, tem coisa aí. Esse pessoal certamente não está assim tão interessado só em definir meta de inflação, salário, etc”. É claro que tinha coisa. A mudança feita na Constituição passava a conferir aos parlamentares um enorme poder na elaboração orçamentária que eles não tinham antes. Rapidamente, os poucos parlamentares que antes já se debruçavam sobre o orçamento viraram oráculos para os demais: João Alves, José Geraldo Ribeiro… E aperfeiçoaram os métodos que já usavam para a pequena parcela de poder que antes da Constituição havia, que era a possibilidade de destinar recursos para instituições filantrópicas, as chamadas subvenções sociais. Agora, eles podiam destinar emendas para qualquer setor, para qualquer obra. E, como se revelou depois, podiam desviar esses recursos públicos.
Estava aberta a temporada de escândalos. O esquema foi se revelando de maneira cada vez mais pesada. Até culminar com um assassinato, de Elizabeth Lofrano, mulher do então principal assessor da comissão, José Carlos Alves dos Santos.
Instalou-se uma CPI. E ela investigou a fundo o esquema. Desvendou como ocorria, e quem eram os principais responsáveis. Houve, é claro, muita negociação para livrar nomes mais poderosos. Mas o Congresso cortou, sim, na carne. A CPI propôs a cassação de 18 deputados e senadores. Seis perderam, de fato, seus mandatos.
Mas há um outro ponto importante da CPI do qual pouco se lembra. Além de propor cassações, a comissão sugeriu profundas mudanças no sistema de elaboração do orçamento. E esse é o ponto grave: essas sugestões foram solenemente ignoradas.
A CPI propunha primeiro um profundo esvaziamento do poder da Comissão de Orçamento. Sugeria que os recursos orçamentários de cada setor passassem a ser discutidos pelas comissões temáticas. A Comissão de Saúde, por exemplo, discutiria as verbas da saúde. A Comissão de Orçamento passaria a ter, somente, um papel organizador, de sistematização final do texto.
E, principalmente, a CPI propunha o fim das emendas individuais. Desse imenso poder de destinar dinheiro público que é dado aos deputados e senadores. Haveria somente emendas de bancada e de comissões. Ou seja, um caráter de discussão mais plural, no qual os deputados precisariam chegar a um consenso sobre o que de fato era importante para suas regiões, estados e áreas de interesse.
Sentada a poeira do escândalo do orçamento, o Congresso caminhou na direção oposta. Cada parlamentar pode hoje propor até 25 emendas individuais. Em 2023, as emendas individuais somaram R$ 21,2 bilhões, R$ 16,4 bilhões para deputados e R$ 4,8 bilhões para senadores. Cada deputado pôde propor R$ 32 milhões, e cada senador R$ 59 milhões.
Inventou-se ainda o tal orçamento secreto, com emendas de relator que eram negociadas com alguns deputados e senadores de forma nada transparente. O Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a prática, mas ela de certa forma continua com as emendas chamadas de RP2 negociadas com o governo.
Foi-se tornando cada vez mais a destinação dos parlamentares obrigatória. Até chegar agora ao ponto proposto pelo deputado Danilo Forte (União-CE) no seu relatório para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O governo ficaria obrigado a liberar todos os recursos das emendas até o final do primeiro semestre. Ponto final.
No argumento, pode ser nobre. Argumenta-se que se quer tirar do Executivo o que hoje é um instrumento de barganha nas votações de seu interesse. Mas a verdade é que isso concentrará ainda mais poder nas mãos dos parlamentares.
E a partir de critérios que passam longe de ser de fato os do interesse coletivo. A tendência das emendas individuais é a pulverização ao máximo dos recursos para que os parlamentares atendam o máximo possível de municípios da sua região de interesse. Ainda que não haja desvio do recurso, essa pulverização de fato interessa ao cidadão? São tratores e quadras esportivas, alguns dos principais objetos de interesse dessas emendas, o que o cidadão realmente precisa?
O escândalo das escolas fake, que Lucas Neiva contou neste Congresso em Foco, mostra bem o efeito deletério dessa pulverização. Cinquenta e quatro escolas e creches receberam empenhos de R$ 5 mil para serem construídas. Para 563, foram R$ 30 mil. Houve até um caso de destinação de apenas R$ 100. Esses valores não levantam uma parede, R$ 100 não compra um saco de cimento. É dinheiro que se esvai pelo ralo.
Um novo escândalo do orçamento acontece. Ele somente ainda não foi desvendado na sua totalidade. Tomara não resulte em novo assassinato…
Será que o Congresso um dia se emenda?