O Brasil tem dois líderes de massas. Um está à esquerda: Luiz Inácio Lula da Silva. Outro, à direita: Jair Bolsonaro. Eles são os dois únicos líderes políticos brasileiros capazes de arregimentar grandes multidões a seu favor. E essa nos últimos anos é uma grande novidade para Lula. Antes de Bolsonaro, o único líder com essa capacidade era ele.
O ato de domingo (25) na Avenida Paulista mostra que Bolsonaro continua tendo essa força. Se está inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) demonstra, com o ato, que talvez ainda tenha capacidade de interferir no jogo da política. Agora, se isso demonstrará capacidade de interferir no jogo jurídico, essa possibilidade parece bem menos provável. E, a julgar pelo discurso que fez no domingo, Bolsonaro já parece ter entendido isso. Bolsonaro levou milhares de pessoas à Paulista, mas, diante dessas milhares de pessoas, Bolsonaro piscou.
Bolsonaro tinha duas alternativas diante da multidão que arregimentou. A primeira era açular aquela tropa como fizera por diversas vezes, a mais aguda delas quando a tropa topou invadir e depredar os três principais prédios da República no 8 de janeiro de 2023. A segunda era pedir uma trégua, meio como o garoto que leva para o pátio da escola o irmão mais velho para evitar que sofra uma surra. Essa foi a opção de Bolsonaro.
Ao pedir em seu discurso que se passe “uma borracha” no passado, ao propor uma anistia aos condenados pelo 8 de janeiro, Bolsonaro deixa claro que tem consciência a essa altura da gravidade das consequências dos seus atos. Parece deixar claro que, do ponto de vista jurídico, já não tem muito como se defender. Tenta, então, um acordo de paz baseado na sua força política.
No fundo, ao propor agora a nova anistia, Bolsonaro espelha-se na antiga, naquela produzida em 1979 pela ditadura militar. Naquele momento, os generais de plantão no poder já sabiam que a derrota do seu regime de coturnos seria uma questão de tempo. E resolveram negociar enquanto ainda tinham força para isso. No poder, propuseram uma “anistia ampla, geral e irrestrita”. Assim, perdoaram tanto seus adversários de esquerda que amargavam na prisão ou no exílio quanto os torturadores brutamontes que patrocinavam. Evitaram, assim, que acontecesse no Brasil o que, por exemplo, o filme 1985 retrata na Argentina. Nosso país vizinho condenou o general ex-presidente Jorge Rafael Videla à prisão perpétua pelos crimes cometidos na ditadura. Aqui, a anistia perdoou a todos.
No fundo, é a eterna repetição de uma certa síndrome de Leopardo que existe no Brasil. Como no clássico da literatura italiana de Giuseppe Lampedusa, por aqui repete-se como mantra a famosa frase do protagonista do livro: “É preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está”. No livro, o nobre conhecido como O Leopardo, ao perceber o fim da sua era com a unificação da Itália, promove o casamento de seu sobrinho com a filha do burguês. Ou seja, a aliança da nobreza decadente com a nova elite que ascendia.
Em 1822, Dom Pedro I proclamou a Independência ao perceber que ela seria inevitável. “Antes que um aventureiro lance mão”, como lhe aconselhou seu pai, o rei de Portugal, Dom João VI. A aliança da nobreza derrotada com a nova nobreza que ascendia.
E assim foi quando José Sarney deixou a presidência do PDS, o partido que apoiava a ditadura, para se unir a Tancredo Neves e se tornar seu vice-presidente em 1985, formando a Aliança Democrática. Ou quando os militares propuseram a anistia.
Bolsonaro faz uma proposta no mesmo diapasão. Com uma diferença. Desta vez, ele não está mais no poder. Nos pactos anteriores, os grupos no poder propunham alianças no sentido de acelerar o que era inevitável de maneira menos traumática. A independência acabaria acontecendo mais tarde, com mais derramamento de sangue (como, aliás, houve na Bahia). A ditadura militar acabaria derrotada, mas resistiria por mais tempo. Nesses casos, porém, quem propunha o pacto tinha o poder nas mãos.
O poder que Bolsonaro oferece é sua capacidade de arregimentar multidões. Não é um poder desprezível. Mas, no fundo, a impressão é que esse poder já estava antes precificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por quem mais participa da investigação contra ele. Já parecia claro que a eventual prisão de Bolsonaro só virá a acontecer quando os responsáveis pela investigação a considerarem suficientemente madura. Ela, portanto, deverá levar tempo. E quem a calcula aparentemente terá essa paciência. Apostando que a cada revelação surgida a capacidade de arregimentação política de Bolsonaro diminua.
Ao propor uma trégua, Bolsonaro talvez tenha dado a demonstração final de que já não consegue mais incitar a sua tropa. Se assim entenderem os seus algozes, sua cartada final resultará em nada.