Há um documentário essencial para entender o nazismo, sua loucura, suas ambições, sua veia autoritária. Chama-se “Arquitetura da Destruição”. Foi produzido em 1989 e seu diretor é Peter Cohen. Ele mostra como a arquitetura produzida na Alemanha naquela época servia ao propósito de enaltecer as “qualidades” (e a palavra vai aqui com todas as aspas possíveis) do regime. Os prédios imponentes, as estátuas de inspiração clássica, a exaltação da beleza branca ariana que se julgava ideal, os belos uniformes, os estandartes agressivos, formavam a moldura pretendida para os discursos inflamados de Adolf Hitler. Tudo junto criava o ambiente que produziu aquilo que Hanna Arendt batizou de “banalidade do mal”: um conjunto capaz de tornar o mal algo corriqueiro, considerado normal, não chocante, parte da paisagem.
Muitas críticas podem ser feitas às concepções criadas por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer para Brasília. Há quem as faça. Não será o meu caso, porque amo esta cidade. Mas há em diversos momentos dessa concepção o que poderíamos chamar de uma “arquitetura da democracia”. Desde os amplos espaços compartilhados, dos pilotis dos prédios que são vias públicas, de passagem de pedestres e não propriedade dos moradores, até alguns detalhes menores. E é por formar uma “arquitetura da democracia” que vez por outra talvez surjam tentativas de alterar e desconstruir esse projeto vindas de quem, provavelmente, não tenha assim o mesmo apreço pelas liberdades.
Quem vive em Brasília há mais tempo e acompanha o Congresso Nacional há mais tempo (no meu caso, são 33 anos), lembrará que havia no gramado em frente ao prédio das duas casas um Parlatório. O palanque de concreto ficava exatamente no meio, em frente à rampa que leva ao teto onde ficam as duas cúpulas da Câmara e do Senado. A inspiração veio do Hyde Park de Londres. Como lá, qualquer cidadão podia subir no palanque e fazer dali um discurso para os deputados e senadores do lado de dentro.
Em 1998, o Parlatório deixou de existir. O então presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, resolveu demoli-lo para ali fazer um fosso. Sua motivação não era exatamente embelezar a área frontal do Congresso. Mas criar uma barreira para manifestações populares. Na ideia original de ACM, o que seria construído não era o atual espelho d’água, era literalmente um fosso, com seis metros de largura e quase dois metros de profundidade.
O projeto foi levado ao escritório de Oscar Niemeyer, que acabou aceitando a ideia de ACM, mas amenizando-a. O fosso virou um lago com belas curvas com profundidade de 60 centímetros. Mas a sua função está ali: separar o povo do Congresso. Estabelecer um limite onde hoje se posta a polícia para evitar que os manifestantes cheguem perto demais da “Casa do Povo” (de novo aqui com aspas obrigatórias).
A ideia que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) colocará em prática de retirar o Comitê de Imprensa de onde está é mais uma tentativa de descaracterizar e ferir a “arquitetura da democracia” concebida por Niemeyer e Lúcio Costa. Diga-se em defesa de Lira que ele não é o primeiro a tentar tirar o Comitê de Imprensa. Diga-se em defesa de Lira que a primeira tentativa foi feita no início da era em que o PT chegou ao poder, quando era presidente da Câmara João Paulo Cunha. Mas, diante de diversos argumentos, até agora seus antecessores acabaram desistindo da ideia.
O Comitê de Imprensa está ali dentro da mesma lógica da “arquitetura da democracia”. Dali, os jornalistas têm acesso rápido ao plenário para testemunharem os principais momentos das votações e para conseguirem contato fácil com os deputados. Da mesma forma, os deputados têm contato fácil com os jornalistas. E quando eles entendiam que jornalistas são interlocutores com a sociedade, muitos deles estavam sempre presentes no comitê.
Da mesma forma, o fato de o gabinete da Presidência estar do outro lado do Salão Verde faz parte da mesma lógica da “arquitetura da democracia”. O presidente tem de passar pelo salão quando vai presidir as sessões. Ali, acaba trocando impressões com jornalistas, com outros deputados, e mesmo com o povo em visitação. Recebe, assim, informações vindas da sociedade que auxiliam de forma democrática a sua tarefa.
Mas a democracia tem a sua resiliência. Como já dizia Corisco na icônica cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, “mais fortes são os poderes do povo”. O laguinho de ACM não impediu as manifestações no gramado do Congresso. Da mesma forma, a transferência do comitê não impedirá o trabalho da imprensa. Por mais que bote grossas cortinas, Arthur Lira agora ficará mais próximo dos gritos e – por que não dizer? – das pedradas dos manifestantes do lado de fora. Talvez os ouça melhor e sensibilize-se com eles. Mais fortes são os poderes do povo.