Há no Planalto Central do Brasil um Dom Quixote de La Mancha às avessas. Um que não pode ser considerado ingênuo, como o cavaleiro medieval criado por Miguel de Cervantes, e nem mesmo louco, como o personagem que lutava contra moinhos de vento por imagina-los como gigantes terríveis. Nem mesmo poderia ser considerado um cavaleiro já que escolheu a Infantaria para servir à pátria e ao contrário de armaduras, prefere os coturnos marrons (marca dos paraquedistas do Exército Brasileiro). Se, por um lado, a ingenuidade e a loucura do personagem de Cervantes ele não herdou, por outro, a mania de lutar contra inimigos imaginários ele superou. Nesse aspecto, inclusive, o Dom Quixote do Alvorada conseguiu transformar vários moinhos, alguns deles que nem mesmo o vento queria, em gigantes com potencial de destruição. A outra diferença entre os dois é que o reino do “Quixote” daqui não é da fantasia, assim como os inimigos dele também não são. O mais interessante de tudo isso é que, até alguns meses atrás, esses inimigos não significavam risco algum porque nem mesmo existiam. Porém, após os últimos rompantes do Dom Quixote do Alvorada, ele transformou o que não existia em reais adversários com potencial de implodir seu reino.
Preciso lembrar que essa não é uma estória e sim uma história com consequências reais para quem a acompanha, que nesse caso é leitor e, talvez, também eleitor. Portanto, essa é a história de um cavaleiro infante, que sem ajuda de outros reinos, subiu ao trono com a promessa de limpar o lugar de seus malfeitores e mandar para a masmorra os ladrões do país. Acontece que devido aos últimos acontecimentos, ele foi obrigado a rever seus planos e fazer mudanças para se preparar para a guerra. Importante ressaltar que essa guerra não existiria se ele mesmo não a desejasse a tal ponto dela acontecer. Deve ser por causa dessa mania, semelhante ao do outro Quixote – o do Cervantes – de sempre ver inimigos onde só havia moinhos de vento, que seu desejo os fez existir. Nessa nova saga do intrépido cavaleiro do Alvorada, a primeira batalha será mostrar que o reino ainda é viável economicamente depois que ele perdeu o seu fiel escudeiro na luta contra a corrupção. Sem o Sancho de Curitiba, a manutenção do poder será mais difícil. Não que algum dia tenha sido fácil mas dessa vez, e mesmo que não admita, circula a informação de que ele está preocupado. O último conflito fez quem já estava morto, ressuscitar. A mania de brigar até com o vento acordou quem “nunca antes na história deste país” ele imaginava rever.
Como não ouviu seus conselheiros, os generais-bombeiros, agora precisará buscar reforços para se fortalecer. O problema é que – em tempos de guerra – com estes novos aliados vêm também os mercenários. Eles até trabalham bem, nestes momentos, mas custam muito caro a nação. Para evitar a contratação dos mercenários, o Dom Quixote do Alvorado aceitou – dizem com perplexidade os que lá estavam – a imposição de uma nova estratégia. O plano a ser executado lembra uma conhecida frase que diz “antes levarem os anéis do que os dedos”. Porém, nesse caso, há quem considera existir uma variável que diz “melhor entregar a mão antes que levem o braço porque os dedos já se foram”. Como o que antes não era ameaça passou a ser, a decisão precisou ser tomada. Ela foi anunciada, logo pela manhã desta segunda-feira, na porta do Alvorada. Na reunião da residência oficial foi definido o que até pouco tempo não era nem mesmo cogitado por ter causado a saída de um de seus mais importantes ministros dias antes, ou seja, permitir que um subordinado tenha plenos poderes de decisão. A mudança de comportamento foi visível e veio da necessidade imperiosa que lembrou uma frase imperial, que dessa vez não foi dita no Ipiranga, mas sim às margens do Paranoá: “Agora é Guedes ou a morte!”
O que interessa mesmo é saber aonde – e como – essa história vai terminar. Alguns dos que trabalham no governo acham que esse acordo é incerto diante do temperamento belicoso do chefe. Eles dizem que é imprevisível saber quando surgirá um novo rompante do cavaleiro infante. O que eles garantem mesmo é que vai ocorrer mais cedo ou mais tarde. Foi para evitar o pior que o Cardeal da Economia foi chamado. Paulo Guedes precisará de soluções de curto e médio prazos para salvar o governo sem desagradar a ala que defende um pacote de investimento estatal. Lembro que ele recebeu “carta branca” para agir e corre para encontrar a solução. Se vai agradar ao chefe já é outra coisa. O caminho com Guedes será o dos investimentos privados com muitas concessões públicas para facilitar a atração de capitais externos defendidos na sua agenda liberal. O risco está na tal “carta branca”, que já derrubou Sérgio Moro. Por isso, o melhor é continuar com o cenário projetado sem pensar nessa variável porque se ela existir, a chance dele continuar vai depender do desempenho dos mercenários.
Nem sempre o melhor cenário é o mais fácil e, nesse caso, a dificuldade está em atrair capitais externos no momento em que quase todas as economias do mundo estão em crise. Como os grandes investidores também precisam arrumar os seus países depois da devastação provocada pela COVID-19, o mais provável é que seja muito difícil encontrar investimentos para melhorar um outro país enquanto a economia do seu próprio clama por um milagre. Um nítido exemplo disso é o que terá de fazer os Estados Unidos para recolocar no mercado milhões de desempregados e voltar a crescer após milhares de vidas perdidas com a pandemia. Se um parceiro estratégico como os EUA terão que se concentrar na sua própria reconstrução, sobra ao Brasil contar com a ajuda de investidores europeus e asiáticos. Só que eles passam por situações semelhantes e, no caso europeu, ainda precisam manter os compromissos com o mercado comum. Já entre os asiáticos, a única esperança de investimentos no Brasil partiria da China. Conhecendo a habilidade chinesa de fazer comércio há 5.000 anos, o investimento para acontecer no Brasil terá de vir com robustas contrapartidas. Esse caminho vai gerar reclamações dos parceiros norte americanos. Se o cenário projeta uma situação preocupante para os próximos meses, a adoção de práticas da “velha política” preocupa muito mais por agora. Porém, ela já é vista dentro do Palácio do Planalto e imediações como uma solução definitiva para manter a governabilidade.
Com a saída de Sérgio Moro, um dos pilares de sustentação do governo federal caiu. Foram três os principais desejos do eleitorado transformados em votos para que Jair Bolsonaro chegasse à Presidência da República: o temor de que o PT e Lula voltassem ao poder; a esperança na volta dos empregos com crescimento da economia; e a manutenção do combate à corrupção. Estes desejos se transformaram em pilares de sustentação do governo eleito, sendo que o relativo ao PT foi personificado como o pilar da “velha política”. Outro que virou alicerce e sustentava o governo até alguns dias era o do “combate à corrupção”, que tinha em Moro sua personificação e ruiu com a saída dele. O único pilar que ainda resiste aos abalos do poder e se mantém de pé com algumas rachaduras é o da economia, personificado em Paulo Guedes. Daí a necessidade urgente de se entregar a ele plenos poderes para a condução de um caminho que retire o Brasil da crise e mantenha o projeto do Presidente Jair Bolsonaro de continuar a governar com possibilidade de se candidatar à reeleição em 2022. Para tal, a ação de Guedes deverá ser perfeita e para isso, a famosa “carta branca” terá de resistir aos rompantes porque em caso de queda deste pilar de sustentação a casa cairá de vez. Por isso, a busca por aliados que podem ajudar o governo começou a ser cogitada como necessária até pelo comedido vice-Presidente Hamilton Mourão.
Se a saída imaginada será mesmo pela contratação dos mercenários com a volta de figuras conhecidas e polêmicas da “velha política”, as esperanças dos eleitores serão frustradas e este pilar que também sustenta o Presidente poderá ruir quando eles voltarem a circular por Brasília. Se há por parte do governo a necessidade de justificar novas alianças com integrantes da “velha política” é porque existe – de fato – o risco de um processo de impeachment. Porém, essa possibilidade permanecerá nas gavetas enquanto houver outra possibilidade: a de reversão da crise com a volta do crescimento econômico. Só que, em Brasília, assuntos como estes costumam dormitar nas gavetas do Congresso Nacional só até que seja interessante acorda-los. A motivação para esse “despertar” poderá vir do enfraquecimento do governo ou para facilitar o crescimento de projetos políticos que disputarão as próximas eleições – e não necessariamente nesta ordem – se é que me entende.
Ao final de tudo isso, o mais impressionante é constatar que um Presidente da República que chegou ao poder sem ter contra ele uma oposição com condições de causar algum dano real, agora precisa se defender com o mesmo discurso de quem tanto criticou. Conseguiu arregimentar uma oposição disposta a pedir sua saída do Palácio do Planalto, através de processos de impeachment, antes mesmo que terminasse a primeira metade de seu governo. Isso nunca teria acontecido se o próprio Presidente Jair Bolsonaro não tivesse optado mais pelo conflito do que pelo consenso. Até a líder do partido que o elegeu – PSL – foi uma das autoras do pedido de afastamento dele do poder. A maioria dos ex-presidentes do Brasil, exceto Jânio Quadros, ouviu falar em renúncia em tão pouco tempo e também nunca precisou se armar contra uma oposição tão feroz já nos primeiros 18 meses que governou. Jair Bolsonaro é o único caso de Presidente da República que – por vontade própria – construiu uma forte oposição oriunda de quem até poucos meses o apoiava e se dizia governista. As atitudes cometidas pelo presidente foram as motivadoras para o aumento destes opositores. Chego ao final, após cenários traçados e lembranças de outros governos existentes, tentando imaginar qual será o desfecho dessa história. Confesso não saber. Já na que foi escrita por Cervantes, o final é conhecido e o romântico e utópico cavaleiro termina sua jornada depois de ser derrotado em batalha e ser obrigado a voltar para o seu povoado após tomar uma atitude antes impensável: a de renunciar à Cavalaria Andante.