Comunicação além da mídia

BlogColuna (In) FormaçãoColunas

Anatomia da mentira

Publicado por: Rudolfo Lago | 19 mar 2021

Assim se constrói o crime perfeito. Quem de boa fé irá duvidar da imagem e da palavra do próprio prefeito de uma cidade quando ele afirma sem receio que não há mortes por covid-19 na cidade. Se ele vai ainda mais além e afirma que ali não há internações em UTI? Se diz, com a firme convicção dos justos, que o comércio está funcionando na cidade e que os turistas estão frequentando normalmente as suas famosas estações de águas termais.

Quem, ainda mais se estiver com a firme disposição de acreditar, duvidará do próprio prefeito de uma cidade se ele afirma em entrevista em vídeo a um vereador que a sua cidade é um oásis no meio do caos planetário provocado pela covid-19?

O caso do prefeito da cidade mineira de São Lourenço, Doutor Lessa, é um exemplo acabado, de estudo mesmo, de como os especialistas em fake news constroem e propagam uma mentira. No vídeo que circula na internet, há três pessoas na sala de uma casa, que parece ser a casa do prefeito. A primeira delas, uma vereadora bolsonarista de São Lourenço, Sargento Marissol, apresenta a segunda pessoa, um vereador bolsonarista de Uberlândia, Cristiano Caporezzo. E esse vereador começa, então, a entrevistar o prefeito, no sentido de mostrar à população de Uberlândia que ela devia seguir o que estaria sendo feito em São Lourenço. Segundo ele, abrir o comércio, eliminando restrições, e passar a usar nos pacientes o tal “tratamento precoce” da covid.

“O prefeito de São Lourenço, médico há mais de 40 anos, está aplicando com sucesso na cidade o tratamento precoce. Nenhum comércio foi fechado. A cidade está funcionando normalmente. Zero de internação. Zero morte por covid”, diz o vereador de Uberlândia.

Então, o próprio prefeito, com ares de especialista sanitário, diz que sua equipe multidisciplinar descobriu um “delay” entre o início dos sintomas e o agravamento da doença. Nesse intervalo, deve-se, segundo ele, usar o tal “tratamento precoce”. E repete: “Zero de internação. Zero de óbito”. Em seguida, Cristiano pergunta sobre o isolamento. E o prefeito diz: “Nós percebemos que o lockdown não é a solução. Não fechamos a cidade. Não quebramos o comércio”.
Tudo certo e muito bom para produzir verdadeiros orgasmos nas hostes bolsonaristas se as informações não fossem desmentidas por fontes oficiais.

Finalmente, não é verdade que São Lourenço não tenha qualquer tipo de restrição das suas atividades. O decreto municipal 8.178 da prefeitura de São Lourenço, por exemplo, decretou “situação de emergência” na cidade e estabeleceu restrições para o funcionamento, por exemplo, de bares e restaurantes, que só puderam funcionar entre as 6 da manhã e as 11h59 da noite. Academias só podiam funcionar mediante agendamento. Serviços não essenciais só podiam atender um cliente por atendente. E os hotéis ficavam com sua capacidade limitada a 50%. Houve restrição nas atividades da própria prefeitura. Pode-se argumentar que em diversas outras cidades as restrições são mais rigorosas. Só não se pode dizer que em São Lourenço tudo funciona normalmente.

Assim se constrói uma mentira. E é dessa forma meticulosa que se consegue que ela circule produzindo seus efeitos.
Agora, por que um prefeito põe a cara para mentir sobre fatos que podem ser facilmente desmentidos pelos próprios dados da sua prefeitura, por que prega em vídeo algo que não pratica de fato, qual o propósito de se disseminar dessa forma algo em que não se parece acreditar assim com tanta veemência, aí é papel para os bancos das academias de psiquiatria no estudo desse sanatório geral em que se transformou o país.

Rudolfo Lago