Tenho um amigo que há três semanas sucumbiu à covid-19 depois de uma renhida luta contra ela. Ficou em coma por quase três meses, alternando momentos de melhora e de piora. Até que a doença ceifou-lhe a vida aos 53 anos de idade, somente.
Tenho outro amigo que há tempo semelhante deixou a UTI de um hospital de Brasília, depois de prolongado coma. Debilitado pela covid, viu associar-se a ela uma dengue hemorrágica. Saiu e voltou a ser internado por três vezes. Entre balões, aplausos de cartazes de “Eu venci a covid-19” está de volta à sua casa, feliz, mas com sequelas que talvez o acompanhem para o restante da vida.
A última coisa que se pode dizer tanto sobre meu amigo que morreu quanto do meu amigo que sobreviveu é que eles tenham sido maricas diante do inimigo microscópico e invisível que se abateu sobre eles. Um inimigo capaz de ser muito mais insidioso, agressivo e perigoso que qualquer soldado de carne, pele e osso. Um inimigo que eles enfrentaram com muita coragem. E com a ajuda de seus amigos e parentes, sobre os quais igualmente a última coisa que se pode dizer é que tenham sido maricas.
Na recente eleição nos Estados Unidos, muitos analistas têm dito que um dos fatores importantes que pesaram para a vitória de Joe Biden foi a reação à forma como Donald Trump tratou a pandemia. O comportamento frio, distante, pouco solidário, que negou a gravidade da doença acabou fazendo com que muitos cidadãos americanos se voltassem contra o presidente que tinham eleito quatro anos antes. Trump pode morrer negando a derrota e se apegando até a morte aos aspectos que tornam o sistema eleitoral dos Estados Unidos pouco claro. Mas ele perdeu as eleições. Biden teve 75 milhões de votos, cinco milhões a mais que ele. No sistema indireto, conquistou os delegados de que precisa para oficialmente ser eleito no dia 14 de dezembro. No seu discurso de vitória, falou que agora “é tempo de curar”. Alinhou-se à necessidade de empatia e solidariedade.
Por aqui, teremos eleições municipais este domingo. E os candidatos que tinham a chancela do presidente Jair Bolsonaro estão um bocado mal na disputa. Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) desaba e não deve ir sequer para o segundo turno, ultrapassado por Guilherme Boulos (PSOL). No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella (Republicano) despenca igual. Em Curitiba, Fernando Francischini (PSL) não consegue atingir 7% das intenções de voto. E por aí segue o país.
O cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carlos Pereira avalia que reação semelhante à falta de solidariedade e empatia de Bolsonaro – em tudo muito semelhante à de Trump – possa ter ocorrido por aqui. Ele fez uma pesquisa, na qual colheu 20 mil respostas pelo país, que conclui que boa parte dos eleitores conservadores que em 2018 optaram por Bolsonaro podem fazer agora no domingo escolhas distantes dele por reação ao seu comportamento diante da covid-19. Se o ato mais visível de combate à pandemia por parte de Bolsonaro para esses eleitores tiver sido o momento em que ele ofereceu uma caixa de cloroquina à ema do Palácio da Alvorada, isso poderá lhe custar nas runas.
“Um dos achados, em três rodadas de perguntas ao longo do ano, foi o rompimento com o presidente de pessoas que, mesmo sem serem próximas à base dele, optaram por não votar no PT em 2018”, diz Carlos Pereira, em entrevista publicada na edição de ontem de O Globo. E ele completa: “A pandemia custou eleitores a Bolsonaro, por causa da forma como ele a tratou”.
Trump, o modelo alaranjado norte-americano seguido por Bolsonaro, perdeu aos esperneios nos EUA com a pandemia em curso. Bolsonaro, talvez, tenha a vantagem de ver a vacina eliminar a covid-19 em tempo disso não ser um problema tão grande em 2022. Para isso, talvez fosse prudente corrigir alguns rumos. Afinal, no momento ele torce contra o sucesso de uma das vacinas. E chama seus eleitores de maricas. Bolsonaro não é centopeia. Não tem tantos pés assim para ficar dando tiro neles.