Publicado por: Rudolfo Lago | 6 nov 2020
“O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente”.
Antes mesmo que se saiba oficialmente o resultado das eleições americanas, o provável vencedor, o democrata Joe Biden, deu declarações que vão na linha dos versos imortais do samba de Nelson Cavaquinho citado acima. Biden disse que foi o candidato dos democratas, mas será o presidente de todos os americanos.
A frase conversa com os versos do samba de Nelson Cavaquinho no que há nela de esforço para eliminar aquele que foi o maior ingrediente da era Donald Trump. Ingrediente que se irradiou para outras eleições semelhantes no planeta, inclusive a nossa: a disseminação do ódio como instrumento definidor dos resultados.
A estratégia adotada por Trump, que é a estratégia imaginada nos modelos de manipulação das redes sociais, no modelo Cambridge Analytica, no modelo Steve Bannon, trabalha forte na criação de uma polarização, da formação de extremos, no estabelecimento de temores, de fantasmas, reais ou não, que possam ser colados no adversário.
Biden tentará retomar de alguma forma a tolerância que é vital para qualquer democracia. A tolerância que normalmente retira as democracias dos extremos. Se for capaz de fazer isso, pode talvez conseguir irradiar esse retorno da tolerância importante para qualquer democracia em outros rincões onde ela foi abandonada, inclusive por aqui.
Se vai conseguir, são outros quinhentos. E é por isso que é melhor cantar os versos de Nelson Cavaquinho neste momento com um ponto de interrogação no final. “O sol há de brilhar mais uma vez”?
O mundo polarizado e simplificado, definido pelo ódio ao inimigo, pelo ódio de torcida organizada, cai como luva no modelo das redes sociais. Cai como luva para um tempo e para uma sociedade que hoje não parece muito disposta a perder muito tempo em reflexões mais adultas. Que quer resumir todos os seus conceitos aos 280 toques de um tweet (de preferência, se der, aos 140 toques originais).
O tempo da falta de reflexão mais aprofundada permite mesmo que, na emoção, se jogue o bebê fora junto com a água da bacia. A inclinação de Trump neste momento de afirmar que a eleição foi fraudada e contestar tal resultado nada mais é do que isso. Por mais confuso e absurdo que pareça para qualquer um o sistema de eleição indireta americano, ele é o utilizado desde o início da fundação do país. É o modelo utilizado pelo próprio Trump quando foi eleito. Ele, que teve menos votos na sociedade americana que a vontade determinada pelo Colégio Eleitoral.
Ao decidir contestar o resultado e levar a decisão para uma Suprema Corte que primeiro construiu para ali obter maioria, Trump não faz nada muito diferente daquilo que sempre criticou, por exemplo, na Venezuela. Ou seja: ele contesta o modelo que já o beneficiou no passado e, ao contestá-lo, coloca esse modelo em xeque. Enfim, coloca em xeque a própria democracia.
Caso seja vitorioso nessa estratégia, abre caminho para que outras democracias e seus modelos também sejam contestados. E é por isso que por aqui a Justiça Eleitoral já começou a colocar suas barbas de molho, imaginando que estratégia semelhante possa vir a ser construída em 2022 para contestar nosso modelo de eleição com urnas eletrônicas.
Assim, apegando-se à emoção, à irracionalidade e à falta de tolerância dos nossos tempos, aferra-se a defesa dos territórios e das posições antagônicas ainda que isso signifique terra arrasada. Ainda que nada fique de pé no campo da democracia, e que ali depois nada viceje, fica o território, agora estéril, conquistado. É isso o que está agora em jogo. “O sol há de brilhar mais uma vez”?