Para além dos registros oficiais e rapapés da República, o que vai ficar da reunião de quarta-feira (24) não será a ideia de que o presidente Jair Bolsonaro convocou os demais poderes para estabelecer um pacto. Ele pode até ter enviado os convites, pode até ter escolhido que governadores chamaria para a cena e quais não chamaria, etc. Pode até ter sido responsabilidade dele não convidar os prefeitos. Mas a verdade é o oposto: Bolsonaro foi convocado para a reunião.
A reunião no Palácio da Alvorada foi uma espécie de ultimato dado pelo Centrão, notadamente pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Os dois e o grupo político que os sustentam davam ali a Bolsonaro uma tábua de salvação. Se o presidente se agarrasse a ela, ficava estabelecido que ele deveria sair da cena do combate à covid-19 e deixar que a partir de agora os profissionais trabalhassem. Do contrário, não haveria mais como seguir barrando os instrumentos legislativos mais graves postos em campo para conter as maluquices negacionistas do governo: a CPI da Covid e, em última instância, os mais de 60 pedidos de impeachment guardados na gaveta desde que ainda era presidente da Câmara o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Os sinais de que Bolsonaro não convocou mas foi convocado para a reunião estão muito claros. O mais claro deles é o discurso de Lira na tarde da mesma quarta-feira, em que ele disse que estava aceso a partir dali um “sinal amarelo” sobre o governo daquele que explicitamente apoiou a sua eleição para o comando da Câmara. Mais claro que o reluzente “amarelo” do “sinal”, impossível.
“Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos”, diz Lira. E não há outra forma de se interpretar esse recado que não seja lembrando justamente das duas espadas mencionadas antes que hoje o Congresso tem para colocar sobre a cabeça de Bolsonaro. Uma delas seria um sinal “laranja”, a CPI. A outra seria o sinal, ou cartão, vermelho: o impeachment.
Lira deixa claro no discurso que não está disposto a permitir que nenhuma outra pauta imposta pelo governo tenha prioridade sobre o combate à covid. “Esta não é a casa da privatização, não é a casa das reformas, não é nem mesmo a casa das leis. É a casa do povo brasileiro. E quando o povo brasileiro está sob risco, nenhum outro tema ou pauta é mais prioritário”. De novo, mais explícito do que isso já se tornaria pornográfico.
Há outros sinais além do discurso de Lira. Quem conhece bem os meandros do Congresso e da política sabe que nada ali acontece de graça. Não foi por acaso que algumas horas depois da reunião no Alvorada estivesse em audiência no Senado o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No protagonismo que ganharam nos últimos dias, Arthur Lira e Pacheco tiveram conversas com representantes do governo chinês para tentar acelerar o envio de vacinas e insumos para o Brasil. E ouviram deles que nenhuma conversa seria possível com o governo brasileiro se o interlocutor fosse o chanceler brasileiro. Quando Lira no seu discurso fala de “erros primários, erros desnecessários, erros inúteis”, o presidente da Câmara não está falando de outro coisa senão de atitudes como a de Araújo que afastaram do convívio diplomático um país que não apenas é o maior parceiro comercial do Brasil como é produtor de insumos para as duas principais vacinas que estão por aqui sendo usadas: tanto a Coronavac quanto a da AstraZeneca.
Já havia uma convocação do Senado feita para que desse explicações o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. O ministro foi trocado por Marcelo Queiroga, mas a convocação está mantida. Deve acontecer na próxima semana. Será mais pressão sobre o governo.
Finalmente, no comitê criado na quarta-feira ficou estabelecido que Rodrigo Pacheco é que fará a interlocução com os governadores e com empresários do setor farmacêutico. Há algum tipo de coordenação, especialmente na área mais técnica, médico-sanitária, que se espera do ministro da Saúde. E qual o papel de fato reservado para o presidente da República além de tirar foto com o grupo para a posteridade? Por tudo o que se viu depois da manhã de quarta-feira, o papel destinado a Bolsonaro a essa altura parece claro. Todos os demais esperam do presidente apenas o seguinte: “Não atrapalhe”.