Era o velório de uma família claramente atônita e chocada. Há pouco mais de 80 dias, todos viviam ali calmamente suas rotinas. Até que o lar foi invadido pela tosse seca, pela dificuldade respiratória, pela ausência de olfato, pela falta de paladar. Com imensa agressividade, o coronavírus foi determinando a falência dos órgãos vitais de um dos integrantes da família. No velório, mãe e filha ainda tentavam compreender o que devastara tão rapidamente a vida do marido e pai que se despedia.
Desde março deste ano, a experiência narrada no parágrafo acima marca para sempre a vida de milhares de famílias brasileiras. Para um considerável número de pessoas, 2020 ficará marcado como o ano da pandemia que extinguiu de forma trágica a vida de avôs, pais, parentes próximos, amigos queridos. Para também um considerável número de pessoas, o ano ficará marcado por uma renhida, difícil, batalha contra o vírus. De histórias de pessoas que o venceram, mas depois de períodos de coma, entubação, sofrimento.
Mas há também um considerável número de pessoas para quem a covid-19 tem sido tão somente uma incômoda atrapalhação. Uma situação chata que adiou negócios, adiou viagens, gerou inflação, gerou perda de empregos ou impediu novas possibilidades de trabalho. Que espalhou pelas ruas policiais e seguranças que importunam exigindo uso de máscara, distanciamento. Ler este parágrafo pode ser para muitos cruel. Mas as ruas estão cheias de pessoas que pensam, agem e reagem assim.
Essa parece ser a nova polarização na qual o presidente Jair Bolsonaro aposta para o debate político de 2022. É nessa direção que vai a narrativa feita pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta no livro que escreveu sobre sua experiência no governo em torno do combate à covid-19, “Um paciente chamado Brasil”. Como disse Mandetta, a negação da gravidade da doença, a aposta na cloroquina como um remédio milagroso, a insistência numa dicotomia entre a necessidade de isolamento social e o risco de uma crise econômica, nada disso foi exatamente fruto da ignorância do presidente, mas parte de uma estratégia pensada.
Uma estratégia que pode ser cruel e desumana com aqueles que padeceram da doença e perderam entes queridos. Uma estratégia arriscada por conta disso. Mas uma estratégia. Que, no fundo, é a mesma estratégia que adotou nos Estados Unidos o presidente Donald Trump.
Tanto Trump como Bolsonaro trabalham no mundo que foi definido pelo escândalo da Cambridge Analytica. Que vai em busca de dados e da privacidade das pessoas para criar nelas medos e receios que antes elas nem desconfiavam que tinham. Medos muitas vezes artificiais e distorcidos. Nas eleições passadas, isso se deu em torno de um tal comunismo que na verdade não existia. No nosso caso específico, pregando no PT e, em consequência, na esquerda, a mácula de uma corrupção que realmente existiu, mas que era vendida como exclusividade dela.
Agora, o pragmático Jair Bolsonaro de hoje já não pode insistir nessa dicotomia. Seus novos aliados, da mesma forma, não parecem ter assim tanto cuidado com o dinheiro público. Ele agora já tem até mesmo um senador flagrado com dinheiro na cueca para chamar de seu. O senador Francisco Rodrigues até aperfeiçoou os métodos, aprofundando, com o perdão da má palavra, o esconderijo do seu dinheiro.
Mas ele precisa manter uma nova dicotomia. Sua lógica para funcionar depende desse maniqueísmo. Depende da escolha de inimigos. A nova polarização é em torno do vírus. No caso de Trump, as pesquisas demonstram que para ele talvez ela não funcione. Mas, para Trump, a pandemia é coisa de agora, coisa vivida neste momento. Bolsonaro só disputará as eleições daqui a dois anos. Talvez, com feridas mais cicatrizadas e o sofrimento diluído, a coisa funcione melhor para ele.